Eu folheava uma edição bastante antiga, em espanhol, de Rei Lear, de William Shakespeare, passando os olhos rapidamente por ela. ”El Rey Lear” fora um presente de minha mãe, quando ainda morávamos nos Estados Unidos. Ela adorava me dar clássicos em versão espanhola como“Una manera de mantener siempre vivo la sangre español en sus venas”. Sorri ao lembrar do tom orgulhoso que ela usava ao me dizer isso, enquanto ainda passava as folhas de forma não tão lenta que pudesse ler tudo, mas nem tão rápida que não pudesse observar palavras e anotações soltas, aqui e ali.
Peguei o café que estava em cima da mesa a qual eu estava sentando e tomei um pequeno gole, voltando a folhear o livro um pouco mais devagar, lendo com mais atenção algumas frases que eu havia grifado. Fiquei a fazer isso por alguns minutos, tentando lembrar o que eu havia pensado ao grifá-las, há muito tempo atrás, quando uma delas me chamou a atenção. Não pelo que eu possa ter pensado ao grifá-la antes, mas pelo o que ela me despertara nesse momento:
"LEAR
De nada no sale nada. Habla otra vez."
"De nada sairá nada?" Fechei o livro com o dedo entre as páginas que eu acabara de ler e fiquei a repassar a frase mentalmente, enquanto um turbilhão de outras emoções começaram a surgir. Eu ainda estava perturbado com tudo o que havia acontecido desde que eu conhecera Evanna. Foram poucos encontros, encontros casuais, mas que me deixaram uma marca misteriosa. Eu passara algumas noites sem dormir depois de nossa conversa no jantar, repassando tudo, tentando encontrar sentido em tudo aquilo. E eu não sabia se o que mais me deixava inquieto e irritado era o fato de que eu ainda não descobrira efetivamente o que não me deixava esquecê-la, esquecer todo o seu mundo ou se o fato de que ela parecia não querer lutar contra aquilo.
Não adiantava mais pensar que eu nada tinha a ver com a história. Não fora um obstáculo antes, pensar dessa maneira e agora era como se aquilo fosse apenas uma frase que ficava a piscar na minha mente, mas que não fazia sentido nenhum. Como se eu não tivesse decoro algum com relação a limites. E o fato dela ter me dito para esquecer e não me meter, parecia fazer com que tudo ficasse ainda mais gravado e que a vontade de me meter ainda mais se tornasse maior.
Mas eu tinha a explicação fácil. Era inadmissível assistir alguém não lutar contra sua própria vida, contra uma maneira melhor de se viver. Era demais para minhas crenças ideológicas, minha ideia de felicidade, de livre arbítrio. Só que essa explicação fácil não me convencia e eu estava relutante em aceitar qualquer outra, me deixando cego para ver a verdade.
Eu pensara em ir atrás dela mais vezes, pensara em tentar retomar a conversa, fazê-la ver, cavucar mais as feridas, para fazê-las sarar de uma só vez em seguida. Mas ao mesmo tempo em que o obstáculo de achar que eu nada tinha a ver com isso tivesse se quebrado, eu não tinha a coragem de me impor a sua presença, para lhe criticar mais. A luta interna que se travava entre provocá-la, entre forçá-la a ver a verdade e aceitar o que ela havia me pedido, eram grandes demais.
Sem contar que, além de tudo isso, eu ainda tinha que ver o seu marido todos os dias. Fingir com mais força do que antes que eu não o achava um ser desprezível. Se antes isso já era um esforço sobre-humano, agora eu não saberia explicar o mal que estava me fazendo, ter que agir com tamanha falsidade e frieza. Eu não tinha alternativas, não tinha para onde correr e ainda não tinha a solução, a não ser que eu queria vê-la feliz.
E eu sabia que não conseguiria viver por muito tempo assim. Sabia que em breve eu explodiria, que não daria em boa coisa. Eu tinha que buscar uma alternativa para minha vida, tinha que me retirar daquela história toda. E depois de passar tantos dias pensando nisso, tentando me livrar do peso dessa perturbação, desses problemas, eu decidi que deveria ocupar mais ainda a minha cabeça. Não ter mais tempo ocioso, que me levasse a pensar em Evanna e seus problemas. Nela com ele, em como ele a tratava. Uma forma de cuidar da minha vida. E o que me faltava era lecionar. Essa era uma das coisas que eu mais adorava fazer.
Não foi tão fácil conseguir o emprego na Universidade de Volterra, já que ter sido demitido de uma Universidade como a que eu trabalhara não era visto com bons olhos. Mas meu currículo era bom, apesar de tudo e eu tinha experiência. Mas mesmo assim eu não havia conseguido um cargo de professor efetivo. Começaria somente por cursos de curta duração. O que para mim já era de bom tamanho, pois tudo o que eu precisava era ocupar todas as lacunas que eu tinha no meu dia a dia. Ocupar minha cabeça com outras atividades.
E ali eu estava nesse momento, esperando na sala dos professores, que desse o horário da aula. Era um curso de literatura inglesa, um curso rápido, que envolvia mais a cultura em geral, do que toda a literatura propriamente dita.
Olhei para o relógio, passando a mão nos cabelos e pensando que aquela não era a hora para eu me lembrar daquilo. Coloquei o livro dentro da pasta e tomando mais um gole do café, me levantei, encaminhando-me para a sala de aula.
Pelo que a secretária havia me avisado, haviam poucos alunos, mas eu ainda não tinha a lista com os seus nomes. Cheguei a porta da sala, abrindo-a e me deparando com pelo menos 15 pessoas, em sua maioria mulheres. Haviam apenas dois homens ao fundo. Andei até a mesa, colocando a pasta em cima dela e sentindo uma sensação boa, que parecia estar perdida dentro de mim: a de estar em uma sala de aula.
Parei encostado na parte de frente da mesa, olhando o relógio mais uma vez, voltando-me para a sala em seguida. -Pelo horário, acho que não vem mais ninguém...- Dei um breve sorriso. -Bom, boa tarde a todos. Meu nome é Adam Young. Estarei a frente do Curso de Literatura e Cultura Inglesa durante nossa dez aulas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário